Felipe Zúniga é filho de Luiz Alberto Zúniga (pra sempre aquele abraço sinestésico) e Cíntia Kury. Eu poderia escrever parágrafos de elogios aos meus dois mestres eficientes, geniais, simples, doces, acolhedores… ih comecei… mas não. Agora é hora de falar da maior criação dos dois, desse artista visual que meio que vi crescer à distância (papo de tia velha).
Ao convidar amigos, conhecidos e familiares para este meu projeto, fiz três perguntas que seriam o norte para um texto escrito por mim. Já de cara recebi o seguinte do Felipe:
“O processo criativo é um assunto deveras cabeludo, mas não é imune a eventuais cortes na barba e vez ou outra sintetizar a coisa. Vou sentar com as tuas indagações e bancar o Louco do tarô. ‘O que você faz?’ imediatamente me lembrou de uma colocação do Faulkner: An artist is a creature driven by demons. He doesn't know why they choose him and he's usually too busy to wonder why. Abraço venusiano”
Percebi que coisa boa viria por aí. E, quando recebi as respostas, vi que não poderia editá-las. Algo genial se perderia no caminho. Portanto, colocarei-as aqui na íntegra e aconselho que sejam lidas em sua totalidade:
O que você faz?
Antes de homo faber, de artífice, eu sou aquele que testemunha, o observador. Todo artista é em essência um observador e um interprete do que captou. Cabe ai a ideia de canal também, de antena parabólica para tudo que acontece por ai, em todos os níveis. Alguns dramatizam aquilo que lhes afeta – ou a palavrinha odiosa ‘problematiza’. Eu estou a serviço da egrégora da arte através das minhas criações. O que eu faço é ousar enxergar o invisível, ir além, materializar o espirito ou espiritualizar a matéria.
|
Hits of sunshine. Nanquim, ecoline, papel de origami, colagem sobre papel. |
Como você faz?
|
Miles Davis. Técnica mista sobre gatorfoam. |
A apropriação de imagens e a possibilidade de (re)significá-las surgiu há dez anos atrás depois de uma longa jornada de experimentação com diversas linguagens. Sempre desenhei, mas, não encontrava uma verdade ali, havia uma discordância entre o que eu queria obter em termos gráficos e o que de fato obtinha, dentro das minhas limitações, com o material. Com a pintura foi a mesma coisa, só mais adiante é que eu percebi que eu pintava... Com tesouras. Meu background é totalmente musical – incluindo aí layout de capas de discos, posters, cenografia – design gráfico, manipulação analógica de fotografia e tudo relacionado à 7ª arte e mais recentemente à ópera. Sou uma esponja. Mergulho intensamente em um assunto e vou estabelecendo associações ou pontes dentro dessas linguagens. Todo o pensamento por trás das minhas colagens vem dessa amálgama de mundos, que são opostos/complementares. Não penso apenas na imagem estática, muda, deslocada. Eu vejo interação entre as formas, busco referencias fora-da-caixa, não obedeço a narrativas ou posso partir de uma e depois desconstrui-la.
|
Do the astral thing. Colagem sobre papel. |
Todo processo de criação é uma libertação, tanto em um nível emocional quanto material. Quando concluo eu já sei que não me pertence mais, é do mundo. A descarga energética varia de projeto para projeto, mas, há sempre naturalidade e leveza, não faço parte desse clichê de artista torturado, tudo é um parto sem anestesia. Acho um exagero e até forçado, não se deve perder a ternura jamais. Você é o médium prestes a transformar algo, a gestação pode ter suas turbulências e a criatura nasce como um trovão, mas se for desgastante e não houver prazer há algo de errado aí. Tudo o que produzo é uma aventura, me sinto como O louco do tarô, prestes a se jogar no abismo. Desvendar ou desvelar pouco a pouco uma ideia é algo absolutamente mágico. Descobrir quem é, qual a intenção disso, o que estou querendo comunicar aqui. Esse processo de analise é intermediário a finalização, se é que podemos chamar disso. Eu acredito que um trabalho nunca está pronto, ele apenas para em lugares interessantes. Isso me fascina e ao mesmo tempo enlouquece, pois há um infinito de outras soluções que poderiam ser dadas ou narrativas que poderiam ser esculpidas... Talvez por isso alguns artistas optem por criar variações sobre uma mesma forma, ideia ou cor. Eu gosto de retornar a uma ideia que não gostei e desenvolver um novo olhar sobre aquilo. Não tenho medo do erro. Esses ‘’acidentes’’ podem muito bem transformar uma imagem banal em um ser magnifico. Tudo esta na maneira como se olha, na intenção desse olhar.
Para essa série que estou trabalhando agora – as 78 laminas do Tarô – resolvi abrir espaço para novos elementos e experimentar uma nova rotina de produção. Aliás, rotina de trabalho também é processo criativo, garimpar material idem. Toda vez que eu inicio uma nova jornada eu nunca sei exatamente aonde aquilo pode me levar, essa descoberta é a força motriz. A confecção de uma colagem pode ter inicio antes mesmo de pegar no estilete, tesoura e papel. Fica fermentando dias na minha cabeça, já tenho a imagem pronta, resta saber como materializá-la. E ai se dá essa loucura que é para o colagista ou quem vive de apropriação: a caçada ao material. Às vezes o próprio trabalho vai me informando como e o que devo procurar. Tenho, naturalmente, minhas predileções, e elementos que invariavelmente fico repetindo e aperfeiçoando a cada colagem. É um processo orgânico, desde a escolha da imagem até as camadas, sobreposições que vão surgindo. Não se pode obrigar um trabalho a ser isso ou aquilo, querer confiná-lo em uma ideia. O grande barato está em ir descobrindo seus segredos aos poucos, deixar-se guiar pelo sensorial, se sentir provocado.
|
O Imperador, a Imperatriz, o Hierofante e a Sacerdotisa. Colagens sobre gatorfoam. |
|
Os Enamorados, o Enforcado, o Diabo e a Morte. Colagens sobre gatorfoam. |
Não acredito em inspiração, nem em writers-block. Isso mixaria. Há naturalmente estímulos e ‘’dieta de criação’’ que consiste em se cercar daquilo que pode servir de referencia, expandir os horizontes, abrir o canal e estar aberto para o novo, o inimaginável. É ai que entra a música e o tarô, são os meus portais para abrir o canal com o invisível. Se não está saindo naquele dia, eu aceito e desapego, retorno no dia seguinte. É importantíssimo ouvir o que aquele trabalho está lhe comunicando, as respostas estão ali, mas é preciso mudar a atitude para conseguir perceber as sutilezas. Nesse sentido a pressa é a inimiga da perfeição, tudo que envolve criação tem um tempo próprio, tem uma maturação. Não dá para apressar senão desanda e ai vem essa baboseira de falta de inspiração. Tem que haver continuidade, constância senão não se evolui. E isso é um processo vitalício, ninguém nunca está 100% pronto.
|
Colagem em escrivaninha. |
Por que você faz?
Tem uma frase de Viktor Frankl que sempre gostei que diz: What is to give light, must endure burning. Isso me dá vida e eu dou vida em troca. Captar, imaginar, abrir novos horizontes, materializar, servir e consolidar, me vitalizam. Sem desejo, sem maravilhar-se não se sai do lugar, você envelhece, empobrece a alma. Estou cumprindo o meu decreto nessa 3ª dimensão. Eu me fortaleço, cresço e aprendo muito criando e dividindo o brilho do que faço. Sou um canal a serviço do invisível, não é uma escolha, simplesmente É. Mana (Axé, iluminação) dos meus ancestrais... Fora os diversos aspectos deliciosos no meu mapa. Isso é um decreto.
|
Liebestod. Colagem sobre papel. |
Quando ele escreve que pinta com tesouras, me lembro do seminal Henri Matisse (e do
álbum Jazz). Quando vejo suas colagens, me lembro de
Richard Hamilton, um dos pioneiros da Pop Art. Não estou fazendo comparações - longe de mim -, mas, em muitos pontos, me peguei impressionado com a maturidade criativa de Felipe, como se ele tivesse encontrado o nirvana espiritual que todo artista busca em sua trajetória. Isso se deve ao fato dele ter 29 anos e eu estar com a tal "Síndrome de Tia Velha".
Me senti inspirado a fazer uma aliteração: “Foda, Felipe. Fez fãs”.