Segunda metade do século 19.
Alguns pintores resolveram parar de idealizar o cotidiano com alegorias e metáforas para fazer obras que mostrassem a realidade e representassem a vida como ela é (que deu no movimento artístico denominado Realismo). Em 1863, Édouard Manet pintou
Olímpia (óleo sobre tela, 1,3 x 1,9 m,
Museu d'Orsay), inspirado pela
Vênus de Urbino de Ticiano e pel'
A maja desnuda de Goya. Dois anos depois,
Olímpia foi selecionada para ser exibida no Salão de Artes de Paris.
IMORAL! VULGAR!
Esses foram os xingamentos mais leves que o precursor do Impressionismo recebeu dos críticos conservadores da época.
O nu artístico sempre existiu, porém, de forma acadêmica (como estudos do corpo humano com modelos vivos), alegórica (em cenas mitológicas) ou exótica (mostrando povos distantes e considerados primitivos). Quando Manet representou uma prostituta de luxo fora desses três contextos, ele deslocou o nu do imaginário profano para a realidade pudica (e hipócrita). BLASFÊMIA!
E ele fez mais: ao colocar a mulher olhando diretamente o espectador com a mão tampando seu sexo, ele deu poder à ela. É ela quem manda no sexo, é ela que dá acesso e controla sua própria sexualidade. QUE ABSURDO (para uma sociedade machista e patriarcal)! UM ESCÂNDALO!
O escritor francês Émile Zola saiu em defesa do pintor:
Quando outros artistas corrigem a natureza pintando Vênus, eles mentem. Manet perguntou a si mesmo porque deveria mentir. Por que não dizer a verdade?
Manet ficou arrasado com as reações do público. Seu amigo, o poeta francês Charles Baudelaire, ficou preocupado:
Manet tem um grande talento, um talento que resistirá. Mas ele é frágil. Pareceu desolado e atordoado pelo choque. O que me impressiona é a alegria de todos os idiotas que acreditam que ele foi vencido.
O pintor chegou a se isolar, mas (ainda bem) foi tirado do ostracismo pelos impressionistas capitaneados por Bethe Morisot, Camille Pissarro e Claude Monet (que foi responsável por comandar uma campanha em 1890 para que a tela fosse comprada e doada para coleções públicas). Ele deveria ter conversado mais com Gustave Courbet, pintor da obra
A origem do mundo, censurada pelo Google e pelo Facebook...
Corta, então, para o início do século 21.
Em julho de 2017, o artista Maikon K (um dos nomes mais respeitados e consagrados da performance no Brasil contemporâneo), realizou em um projeto privado a apresentação da
DNA de DAN, na qual fica nu com o corpo coberto de um líquido que se resseca aos poucos, até, ao fim, se quebrar, revelando a pele do artista. Foi preso de forma truculenta por ATENTADO AO PUDOR e OBSCENIDADE, mas fez questão de declarar:
Podem me colocar diante de um juiz. Eu sei que eu não fiz nada de errado nem nada pelo qual eu deva me envergonhar. Eu estava trabalhando, e minha função é essa: perturbar a paisagem controlada dos sentidos. O meu corpo afronta os seus canais entupidos, o seu ódio contido, mesmo estando parado. Porque vocês nunca vão me controlar e eu pagarei o preço, eu sei, eu sempre paguei. Porque parado ali, nu, imóvel no meio da praça, suas vozes me atravessam, suas piadas estúpidas tentam me derrubar, sua indiferença me faz rir, seu embaraço me dá dó, mas eu continuo em pé.
Em setembro de 2017, o artista Wagner Schwartz realizou em um museu de arte a apresentação
Le Bête, na qual manipula uma réplica de plástico de uma das esculturas da série "O Bicho", de Lygia Clark, e se coloca nu, vulnerável e entregue à performance artística, convidando o público a fazer o mesmo com ele. O evento tinha avisos de classificação etária. Uma mãe (coreógrafa e também artista performática) levou a filha para interagir com o artista. Foi filmada e... PEDÓFILO! CRIMINOSO! DESTRUIDOR DA FAMÍLIA TRADICIONAL BRASILEIRA!
Esses são apenas dois acontecimentos entre a dezena de censuras que a Arte vem sofrendo no atual momento. Vivemos um período de transição e polarização que a Arte insiste em escancarar. Disse Zola:
Basta ser diferente dos outros, pensar com a própria cabeça, para se tornar um monstro. Você é acusado de ignorar a sua arte, fugir do senso comum, precisamente porque a ciência de seus olhos, o impulso de seu temperamento, levam-no a efeitos especiais. É só não seguir o córrego largo da mediocridade que os tolos apedrejam-no, tratando-o como um louco.
A nudez é um dos tabus mais hipócritas que temos hoje em dia. Em nossa sociedade, pode-se usar roupa íntima na praia, mas não se pode amamentar em público. Pode-se colocar crianças maquiadas dançando eroticamente um funk, mas não se pode expor a criança à manifestações artísticas mais contundentes. Pode-se dar uma arma de brinquedo, mas jamais ir a uma praia de nudismo. Mande nudes, mas não tome banho com seu filho.
A nudez feminina vem sendo "trabalhada" há séculos, enquanto a nudez masculina se resume à estátuas gregas com folhas de parreira (castração religiosa) ou membros pequenos que não chamam atenção. Maikon K e Walter Schwartz se colocam no lugar da
Olímpia e confrontam os padrões tanto da representação masculina quanto da Arte em si.
Esse é o papel da Arte (dita contemporânea) desde que as vanguardas do século 20 começaram a questionar o que vinham sendo feito em busca de maior expressividade ao invés de restrições estéticas. Técnicas e suportes foram sendo experimentados e substituídos. O corpo se tornou ferramenta e meio. Gostar ou não gostar não é mérito da Arte: isso é um problema do espectador.
Toda essa discussão só incentiva ainda mais a produção artística. Eu espero muita gente pelada por aí.