domingo, 4 de dezembro de 2016

"A arte existe, porque a vida não basta"

Este ano o Centro Cultural do BNDES montou uma exposição para comemorar os 85 anos de carreira de Ferreira Gullar, que tive a oportunidade de conhecer com meus alunos.

Entrada da exposição.

A exposição traçou uma linha cronológica com textos, vídeos, livros, objetos, fotografias, pinturas, colagens e até músicas feitas por esse múltiplo artista maranhense.

Poema Sujo (1976), um dos principais poemas da literatura brasileira.
Poema Enterrado (1959), apresentado pela primeira vez em público.

Eu já conhecia alguma de suas obras por três razões: (1) dou aulas de Arte e um professor de Arte não pode desconhecê-lo; (2) sou fascinado pelo Concretismo/Neoconcretismo do qual ele fundamental; e (3) julgo que minha veia artística se inspira no que foi feito por Gullar. Ainda tive a oportunidade de ver este ano o Manifesto Neoconcreto escrito por ele na Tate Modern, em Londres (abaixo).


Há alguns anos atrás, ele apareceu na mídia contando sua história de vida por causa de seus dois filhos com esquizofrenia, assunto que, naquela época, estava sendo retratado em uma novela. Mas o grande público não sabia de sua capacidade de dizer tudo com poucas palavras. Sinceramente... acho que nunca soube.

É dele a sábia frase que entitula esta postagem. Agora, em sua morte, espero que ele seja elevado ao seu lugar de direito, ao hall dos grandes artistas brasileiros, responsável por mostrar ao mundo nosso potencial para a Arte.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Arte ao Lado: Amador Perez

Na primeira edição do Arte ao Lado, fiz uma postagem sem conversar diretamente com o artista (no caso, Fabio Lopez). Hoje faço o mesmo para escrever sobre Amador Perez. Na verdade, escrevi sobre ele há 2 anos por conta da exposição comemorativa de seus 40 anos de carreira (Memorabilia), mas gostaria de reescrever e acrescentar algumas coisas.

Ofício I, do díptico baseado em "Newton", de William Blake.
Desenho, série "Imagens e espaços", 1991, grafite, 10 x 14 cm, Coleção do Artista.

Chamá-lo de desenhista é reduzi-lo. Sua técnica em grafite transborda do academicismo e inunda suas obras com uma riqueza de detalhes, uma perfeição estética inigualável. Isso oferece a abertura necessária para explorações técnico-visuais, onde Amador se permite embaralhar grafite, gravura, fotografia, impressão, Photoshop e até mesmo objetos pessoais em novas representações artísticas.

Livro de artista Nijinski:Imagens. 2013.
Estudos a partir de "Madame Récamier", de David.
Tonergrafia, série "Impressões da Arte", 2004, impressão a laser sobre papel, 42 x 29,5 cm.
Série COSMO-LÓGICA.
Negativo da imagem do desenho Indeciso, série Eus e Um, 1990, grafite e lápis de cor, 14 x 11 cm.

Em uma grata oportunidade, Amador resumiu diretamente sua relação com a arte:
A arte salva. Esse é o meu lema e escopo. É por ela e através dela que sobrevivo.
O interessante disso é pensar que ele foi meu salvador. Conforme escrevi anteriormente, Amador foi meu professor na faculdade. Sua fala doce, seu amor pelo ensino, pelo design e pela arte transbordavam para aqueles que - como eu - andavam desmotivados pelo boulevard esdiano. Com ele aprendi a errar e encontrar beleza no erro. Aprendi a insistir e persistir em busca de um processo significativo, relevante, engrandecedor que transcende o resultado.

Mais uma vez, obrigado.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Arte ao Lado: Bida

O ímpeto criativo pode vir de diversas fontes, seja de uma urgência da alma, de uma necessidade de ocupação do tempo ocioso ou até mesmo de uma questão prática e comercial (Graphz Galeria). Assim pensa Alcebíades Maia Souto Jr., o Bida, diretor de arte e publicitário de formação.

Ter projetos em mente nos quais investir faz com que ele crie imagens autorais utilizando referências e trabalhos já conhecidos, que vão desde o abstracionismo geométrico à estampas de ladrilhos hidráulicos. Uma vez que costuma buscar a síntese, se interessa por soluções gráficas que tragam o mínimo em matéria de elementos e traços, como logotipos, HQs antigas do Recruta Zero, a Pop Art de Warhol e Tozzi, o neoplasticismo de Mondrian e a arte cinética de Cruz-Díez.


Bida não se preocupa com o desenvolvimento de um estilo próprio, uma personalidade que o torne “reconhecível”. Ele diz que “gera uma certa anarquia visual”, mas é nítida sua pluralidade artística que transborda de seus gostos pessoais para suas habilidades profissionais.



Além disso, Bida é um excelente anfitrião.

sábado, 1 de outubro de 2016

Arte ao Lado: Bianca Behrends

Goste você ou não, o Carnaval brasileiro é uma expressão cultural nacional reconhecida mundialmente. O Sambódromo apresenta todo ano um trabalho artístico incrível realizado por um gigantesco número de pessoas. Uma dessas pessoas é Bianca Behrends, cientista social especializada em cultura popular brasileira, que se tornou carnavalesca e membro da Comissão de Carnaval do G.R.E.S. Beija-Flor de Nilópolis. Ela é responsável pela documentação artística dos enredos, atuando no processo de concepção, desenvolvimento e execução dos temas propostos… ou seja, dá vida ao enredo, transforma história em arte. É ela que confecciona com todo comprometimento e devoção o material descritivo do enredo para todos nós podermos entender o trabalho artístico que está sendo apresentado na Avenida.

Desenho original da caravela espanhola que foi o
abre-alas em 2004 para o enredo Manôa - Manaus
Amazônia Terra Santa que alimenta o corpo, equilibra
a alma e transmite paz

(Arquivo G.R.E.S. Beija Flor de Nilópolis)
Temos visto neste projeto que a maioria dos artistas se relaciona com sua arte de forma intrínseca e natural. No entanto, Bianca - como ela mesmo diz - “caiu de paraquedas” no Carnaval. Por causa de questões acadêmicas e burocráticas (e insistência de sua mãe), foi fazer um curso de Introdução à Cultura Popular Brasileira que serviria “somente” como um benefício titular em um possível concurso público. Porém, Roberto da Matta e Rosa Magalhães começaram a encantá-la. Em 2003, a tijucana e salgueirense fervorosa acabou conseguindo estágio em outro município… em Nilópolis. Como seriam só quinze dias, Bianca nem se estressou, só não esperava que logo no quarto dia, seu trabalho fosse se tornar o carro abre-alas dando à Beija-Flor o campeonato daquele ano. Claro: imediatamente efetivada. E no ano seguinte? Bicampeã.


Até então, Bianca adorava seu trabalho, mas confessa que não acreditava que ficaria no Carnaval. Em 2007, teve que assistir pela TV a Beija-Flor vencer o Carnaval. Foi aí que se deu conta que já tinha virado azul e branco e que não conseguiria ficar sem o canto da comunidade que se eleva na Marquês da Sapucaí. Em suas palavras: “tinha sido embriagada por essa cachaça que é o Carnaval.”

Carro do campeonato de 2005 sobre as missões jesuíticas no Brasil.
Carro do campeonato de 2015 com enredo sobre a Guiné Equatorial.

Ao longo desses treze anos, Bianca não só é hexacampeã com a Beija-Flor, como também é tricampeã pelo Canto da Alvorada (Belo Horizonte / MG) e tricampeã do prêmio Plumas e Paetês / Melhor Pesquisadora, entre outros. Apesar de tanta renúncia pessoal, grana curta e horários imprevisíveis, é feliz no que faz.

Na verdade, feliz sou eu de ter alguém como Bianca próximo a mim. Chega a ser difícil de explicar... difícil não em palavras, mas em todo sentido emocional. Estudamos juntos na mesma escola desde sempre, por isso, nos conhecemos há mais de 30 anos. Esse tempo forjou uma amizade que não se apega ao cotidiano, mas aos laços fortes que a história (alvo de suas pesquisas!) acaba trazendo. Aliás, feliz são todos que a tem por perto. Seu humor impagável, seu coração gigante e sua capacidade de falar em hipertexto são características daqueles sambas que levantam a avenida e fazem a gente esperar ansiosos o próximo carnaval (ou o próximo encontro).

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Doces memórias


No início do ano falei de um gatilho olfativo de alfazema que me lembrou minha avó. Agora o gatilho foi outro: infelizmente foi pela passagem de uma tia-avó muito especial que tive na minha vida. Ela foi a pessoa mais doce, carinhosa e inocente que já conheci e - creio - não conhecerei igual. Acho até que ela era um erê, um espírito criança, que veio ao mundo para aflorar o que há de mais doce na gente. E é dessa doçura que me veio a memória.

A rabanada que ela fazia no Natal era insuperável (eu comia umas quatro antes da ceia!). Sua panquequinha de banana eu nunca mais vi igual e não sobrava nos pratos aos domingos. Seu jeito simples e risada gostosa adocicava tudo mais.

Impossível lembrar dela sem contar que ela escondia jujubas, bombons e biscoitos no armário. As crianças eram as únicas que podiam comer seus doces, os quais ela gostava de dar em segredo como se criasse um elo de ligação ainda mais forte, ainda mais doce. Nem preciso dizer que nós (em cinco primos) somos apaixonados por doces, chocólatras mesmo. Não por culpa dela, mas sim graças a ela.

Ela também me ensinou a gostar de Clara Nunes e é por isso que fecho aqui com uma de suas músicas.


Com licença que vou ali comer uma jujuba.

sábado, 10 de setembro de 2016

Verdadeiros valores olímpicos

Só em 2008 comecei a acompanhar as Paralimpíadas e a palavra IMPRESSIONANTE me tomou. Ver alguém com paralisia cerebral ganhar medalha foi INSPIRADOR. Até concordei com o chato do Alberto Bial que chamou o evento de SUPEROLIMPÍADAS. Já havia virado fã com todas as conquistas dos atletas e percebi que tinha muita a refletir. Em 2012, continuei acompanhando e até mesmo preferindo acompanhar as superações.

Se você reler minhas postagens, verão inúmeros questionamentos que fiz e todos eles continuam na minha cabeça. Parece que só de 4 em 4 anos as pessoas prestam atenção nisso e, mesmo assim, muita gente só está vendo agora porque é na nossa casa. A hipocrisia parece ter se tornado uma condição intrínseca ao brasileiro. Mas saindo disso, acredito que os verdadeiros valores olímpicos só aparecem agora nas Paraolimpíadas (sim, vou manter o O). Vamos entender um pouco isso...

Os Jogos Olímpicos tem sua origem associada às competições atléticas na Antiguidade realizadas para celebrar os deuses. Eram considerados uma obrigação moral, uma vez que beleza e força eram exercitadas pela ginástica e pelas artes, desenvolvendo o corpo e a alma juntos. Em 1894, o barão francês Pierre de Coubertin propôs o retorno dos Jogos para que os povos desenvolvessem uma série de princípios universais que poderiam ser aplicados não somente ao esporte, mas à educação e à sociedade. São três os valores associados aos Jogos Olímpicos:
AMIZADE = O amigo procura entender o próximo apesar das diferenças e estende a mão; tem em relação ao outro atitudes e sentimentos positivos como empatia, compreensão, honestidade, compaixão, confiança, solidariedade e reciprocidade positiva. A chama olímpica representa à amizade e, por isso, a tocha viaja pelo mundo, passando de mão em mão, levando o espírito dos Jogos.

EXCELÊNCIA = É dar o melhor de si, tanto no esporte quanto na vida. Não é vencer, mas sobretudo participar, fazendo progressos face a objetivos pessoais, esforçando-nos por sermos cada vez melhores nas nossas vidas. O lema olímpico – Citius, Altius, Fortius (mais rápido, mais alto, mais forte) – representa a excelência.

RESPEITO = É o sentimento de consideração por outra pessoa, de outro país, cor, gênero ou crença. Inclui o fair play (jogo limpo), a honestidade, respeito a si mesmo (não ao dopping) e ao meio ambiente. Os anéis entrelaçados são a marca dos Jogos e também o símbolo do respeito, pois representa a união dos cinco continentes de forma universal, sem discriminações.

Em 1948, Sir Ludwig Guttman, neurocirurgião alemão, desenvolveu um novo tratamento para reabilitação de soldados ingleses feridos na Segunda Guerra Mundial: uma competição esportiva anual que começou no mesmo dia dos Jogos de Londres daquele ano. Em 1960, o evento foi para Roma junto com os Jogos Olímpicos e se tornou a primeira versão oficial dos Jogos Paraolímpicos, acompanhando seu calendário. Tendo como lema a frase “Espírito em Movimento” e acreditando que a superação dos atletas portadores de alguma deficiência são o exemplo claro da excelência olímpica, foram determinados quatro valores Paralímpicos:
DETERMINAÇÃO = Dá foco, direção e confiança. Faz com que acreditemos em nós mesmos e continuemos a fazer o que é melhor até o nosso limite, mesmo em situações adversas. Como disse Albert Eistein: “Há uma força motriz mais poderosa que o vapor, a eletricidade e a energia atômica: a vontade”.

CORAGEM = É a firmeza de espírito para enfrentar difíceis situações físicas, emocionais e morais. Ela nos ajuda a enfrentar a dor, o sofrimento, o medo, o perigo, a incerteza e a intimidação. Também nos dá força para agir corretamente contra a vergonha, a desonra e o desânimo, permitindo que sejamos nós mesmos independente das diferenças.

IGUALDADE = É ser o mesmo em quantidade, medida, valor ou status, assegurando imparcialidade, oportunidades e tratamentos iguais para todos sem olhar para religião, etnia, raça, sexo e idade. Como valor paralímpico, também quebra as barreiras de discriminação com as pessoas portadoras de necessidades especiais.

INSPIRAÇÃO = É ser o exemplo, inspirar os outros de forma positiva, tornar-se uma fonte de ideias para completar uma tarefa ou fazer algo especial. Como valor paralímpico, a superação de cada atleta é uma constante inspiração para todos nós.
Então, vejam... os quatro valores paraolímpicos são bem óbvios e claros ao se assistir as competições. Agora releia os três valores olímpicos e perceba que eles acontecem muito mais nas Paraolimpíadas onde não há adversários, mas seres humanos desafiando a si mesmos que conhecem a dor do outro.

É realmente preciso rever muita coisa. Não só dentro de nós mesmos - quando tornamos enorme um problema pequeno -, mas também no universo coletivo - quando temos dificuldade de enxergar o outro e o julgamos sem sabermos suas particularidades. Talvez o maior sentimento que brota nesses jogos é o da ESPERANÇA, pois vemos que o impossível é só uma palavra com um prefixo chato.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Arte ao Lado: Giuseppe Gammarano

Giuseppe Gammarano nasceu em Salerno, Itália, em 17 de novembro de 1910. Emigrou para o Brasil em 1933 e foi trabalhar na Gusmão, Dourado & Baldassini, Ltda., uma das maiores construtoras do Rio de Janeiro. Casou-se com Nina Cruz Gammarano em abril de 1948, com quem teve dois filhos, Ricardo e Bianca. Gammarano havia concluído seus estudos na Scuole Serali Artigiane di Disegno Applicato Alle Arti, em Nápoles e, embora exercesse a função de desenhista-projetista na construtora, sua formação artística o fez buscar o Núcleo Bernardelli, que concentrava vários artistas da época nos porões da Escola Nacional de Belas Artes, como Takaoka, Pancetti, Malagoli, Rescala, Milton Dacosta, Bustamante Sá e Edson Motta. Faleceu em 1995, deixando vasta e belíssima produção artística que inclui desenhos, perspectivas, baixos relevos, medalhões, cartazes e principalmente a escultura da cabeça de Mercúrio, “Deus do Comércio”, que se encontra na fachada do prédio da Associação dos Empregados no Comércio, na Avenida Rio Branco.



Autorretrato
Então... esse Arte ao Lado é diferente, porque não está exatamente "ao lado": é in memoriam. E não conheci Seu Pepe, mas fui amigo de sua esposa Dona Nina e de sua filha Bianca, também arquiteta. As duas também não estão mais por aqui, porém, estive junto de ambas. Pude ouvir algumas histórias de Seu Pepe e tive acesso a seus incríveis trabalhos. Essa postagem vêm de uma dívida pessoal que sempre senti por não ter conseguido ajudar Bianca em vida a mostrar o trabalho de seu pai.

Bustos de Nina.
Busto de Homem e de Mulher Negra.

Ainda devo e ainda vou pagar.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Arte ao Lado: Rogério Ruiz

As artes clássicas nortearam o entendimento ocidental de beleza, mas Rogério Ruiz buscava nas emoções dos artistas a contextualização que levava à reflexão: “Uma obra de arte é tudo que causa reação no espectador. Para o bem ou para o mal.” Talvez por essa razão tenha sido tocado pelo figurativismo abstratizante, onde os artistas precisam ter o talento da realização da obra e a capacidade de adequá-las à linguagem contemporânea sem perder sua essência.

Equilibristas VI. Acrílica sobre tela de Odilla Mestriner (1973). Coleção particular.

A Santa.
Nanquim e colagem sobre cartão de
Odilla Mestriner (1966). Coleção particular.
A cirurgia plástica deu a Rogério um espaço para desenvolver seu senso estético e a possibilidade de desenvolver uma coleção de arte que apaziguasse (e - por que não? - instigasse) seu espírito. Começou a comprar obras de artistas que, além de agradá-lo, “conversassem entre si”. Assim, Odilla Mestriner, Lívio Abramo, Djanira, Darel Olivença, Babinski, Wesley Duke Lee, entre outros, o recepcionam quando chega em casa. Como colecionador, Rogério entende a necessidade de preservação e difusão da arte. Com essa ideia, recentemente, escreveu o livro Odilla Mestriner - O olhar do colecionador (São Paulo: Giostri, 2014), onde reuniu e organizou as informações que conseguiu rastrear de todas as obras da artista.

Contar como conheci Rogério seria preciso censura. Ou uma novela mexicana que passasse depois da meia-noite. Mas sempre ficou claro que beleza é algo que ele respira e transpira: a estética é seu suor e sua paixão.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Eu e o futebol

Comecei no futebol como goleiro, acreditem. Acho que era uma vontade inconsciente de ser escolhido a qualquer custo, afinal, goleiros sempre eram poucos e fundamentais. Mas você já tomou uma bolada na cara? Ou pior: um frango e sofreu toda a responsabilidade de um jogo perdido? Pois é... sorte que eu tive um treinador que enxergou alguma coisa nos meus pés e me levou pra zaga. Da defesa, virei rapidamente ala esquerda.

Não lembro desse Carnaval em 1980,
mas já vestia o manto do Flamengo.
Talvez a maior quantidade de memórias que eu tenha antes dos 10 anos são referentes ao futebol. Não digo memória de fotografia, aquelas que as histórias são contadas tantas vezes pelos familiares em fotos que você acaba dizendo que lembra. Não. Apesar de não lembrar de quando comecei a jogar futebol na AABB-Tijuca (sou da época que futsal era futebol de salão com lateral batido com as mãos e goleiro que não podia atravessar a bola do meio de campo), me lembro de muito mais. Das aulas às terças e quintas (terça era treino e quinta era jogo), da forma de escolher os companheiros de equipe (sentados em fila por posição), da quadra (do ginásio e do clube todo, na verdade) e até de nomes de colegas (Guilherme, Rodrigo, Rafael, Bernardo, Danilo, João Gabriel, Cristiano...). Mas do que lembro perfeitamente é do momento-chave que mudaria minha relação com o futebol e - bem possivelmente - minha vida toda.

O grupo era divertido (eu estou colocando chifrinho no colega).

Era campeonato do fim de ano de 1986 e meu time chegara na final. Nós havíamos batido o time mais assustador e a confiança era enorme para a final. Mas... nosso goleiro faltou! O desespero começou a bater quando só tinha o pior goleiro do clube pra substituí-lo e não podíamos recusar. O jogo seria duro. Talvez fosse até pra pênaltis ou alguém ganharia por 1 a 0 na dificuldade... mas nós perdemos por 2 frangos a zero.

O safado fazendo graça antes já devia ser um indício da cagada que faria durante...

Minha raiva era enorme. Me lembro até de reclamar com o goleiro no meio do jogo. Não sabia lidar ainda com aquelas sensações e na hora de receber a medalha de prata estava de cara feia. Saí zangado em todas as fotos e não queria falar com ninguém. Chegou o tal momento-chave...

Não achei a foto da medalha... então, vai essa de perdedores embaixo com caras desapontadas.

Naquele mesmo dia em casa, numa tentativa de educar, meus pais disseram, em resumo: "ou você aprende a competir ou você sai do futebol" (rolou também alguma negociação com ver televisão, mas minha memória também já não é tão boa). Veja bem: eu fazia judô e pedi pra sair porque não gosto de brigar e ter que disputar na briga; eu era federado na natação e pedi pra sair porque não gostava de competir; ou seja, eu não queria competir! O que eu não gostava (e ainda não gosto) era de ter dado o melhor de mim e perder por causa de outros. Claro que, na raiva e na teimosia (que me é característica), eu disse: "então, eu paro de jogar futebol".

Eu chamo de momento-chave porque não sei onde estaria hoje se tivesse continuado (penso nisso direto!). Ainda fiquei no clube mais um ano sem vontade até parar. Levei seis anos pra voltar a jogar. SEIS ANOS! Só me permitia jogar no recreio na escola com bola feita de copo plástico e guardanapo. Passei a jogar handebol (que ainda acho muito maneiro). Nem futebol na TV eu assistia. Porém, em 1993, um reinício diferente...

Mesmo sabendo que o Flamengo tinha sido o campeão brasileiro de 1992, eu tinha perdido aquele ímpeto. Vi os gols, me lembro da comoção familiar... mas nada em mim. No ano seguinte, minha turma da escola resolveu fazer um "Bolão do Campeonato Brasileiro". Detesto jogos de azar, mas eu queria participar de algum jeito. Como sempre fui muito inteligente e organizado, resolvi ser o responsável por colher as apostas e redistribuir a grana. Com isso, todo domingo eu esperava o Fantástico pra ver os gols da rodada. Por incrível que pareça, isso reativou a velha chama. Em 1995, fui pela primeira vez ao Maracanã (estreia do Romário no Flamengo em um empate sem gols contra o Fluminense).

Foi meu saudoso amigo Leandro quem me levou de volta às quadras. Jogávamos à noite em inúmeras quadras dos clubes portugueses tijucanos (Vila da Feira, Trás os Montes...). Meu futebol estava enferrujado... mas isso não me impediu de jogar toda terça de 22h à meia-noite no Clube dos Fumageiros. E foi lá, entre amigos, que me redescobri no futebol.

Vencer, empatar, perder. Não importava. Até porque... faça as contas: partidas de 10 minutos num período de duas horas, contando intervalos dá uma média de 8 partidas por dia! Ganhar três era incrível, quatro era campeão mundial! Imagina quando era partida de 2 gols com "rei da mesa" e a partida durava 2 minutos? Então, em uma simples noite, o que importava era a diversão com os amigos, as zoeiras, o papo pós-pelada que enaltecia os erros e não as vitórias. Assistir futebol fosse na TV ou no estádio virou vício. Gritava na janela, discutia futebol e tudo.

Pouco tempo depois, nosso grupo passou das quadras do futebol de salão para o futebol society de grama sintética. Todo domingo, de meio-dia às 13h, num sol escaldante de Vila Isabel, o grupo estava lá. Com embates históricos entre os goleiros Thiago e Percê, a dupla de zaga Claudio e Jorge, a histeria divertida do Afonso e as habilidades de Davi e Neneco. Podia ser Dia das Mães... dos Pais... dos Namorados... até aniversário de filho tinha gente lá pra jogar. Mais um monte de memória, um monte de laços.

O aniversário dos amigos também era comemorado na churrasqueira da pelada.

E foi nesse ponto que comecei a despontar mais na velocidade do que na habilidade. Acredito que foi a forma que meu corpo/cérebro encontrou para suprir os anos parados. Leandro dizia que gostava de jogar comigo por causa disso: ele, zagueiro, jogava no "ponto-futuro" e gritava "corre que dá". E dava. Eu acreditava nele. Ele me levou pra vários outros lugares pra jogar. Em um campo no Jacarezinho (segunda de 22h a meia-noite), eu fiquei conhecido como "velocista" já no primeiro dia.

Só que aos 18 anos, outro momento-chave. Em Teresópolis (que também guarda inúmeras histórias futebolísticas como, por exemplo, eu enfrentando o gigante Bernardo), o campo de grama natural era (e ainda é) de um lado parede e do outro cerca de arame. Num dos meus momentos de velocidade, vi que a bola estava quase saindo na lateral gradeada, mas eu tinha certeza que conseguiria impedir. Pra isso, eu precisaria usar a grade como freio... e foi o que fiz: consegui tirar a bola da lateral me jogando na grade ("como uma lagartixa", diz meu tio). Só que tinha um arame solto na altura do meu joelho... que ficou enganchado e abriu um buraco nele que saía até a gordura!

Toda essa história virou um clássico na minha família, com minha tia tentando "colar" o ferimento com esparadrapo, eu apavorado de medo, a anestesia local e meu pai se jogando em cima de mim no hospital... Esse é outro momento-chave porque passei a rever minha velocidade no futebol. Eu precisava voltar àquele velho futebol de salão. Então, pra recuperar o tempo perdido passei a jogar todo o futebol que via pela frente. Batista, Clube da Light, Asbac, Alto da Boa Vista... Não importava onde ou o horário. Cheguei a jogar futebol 4 vezes na semana! Ainda me destacava pela velocidade, mas, aos poucos, as habilidades foram reaparecendo.

Até aqui, na maioria das vezes jogava ou com o mesmo grupo ou com alguém do grupo que me chamava. Em 2000, o namorado de uma prima me chamou pra fazer parte de um novo grupo em um galpão de São Cristóvão aos sábados. Eu adorei a galera, mas era tanta regra pra poder jogar e fazer parte do grupo que não vingou. Só que em 2001, esse mesmo namorado da prima resolveu dar um tempo da pelada (que saíra de São Cristóvão para o Horto) e abriu a vaga pra mim. Foram ONZE ANOS de pelada.

Saudosos meiões laranjas com chuteiras douradas que se tornavam um borrão veloz!

Eu nem sei como começar a escrever desse período, mas posso te garantir que foram onze anos absolutamente maravilhosos. Não só de futebol (onde atingi meu auge e cheguei a fazer um teste para virar profissional), mas de pessoas, de alegrias, de amizades, de aprendizado, de vida. Não havia o que me tirasse de lá num sábado de 16h às 18h (que na maioria das vezes se estendia até às 20h só no papo). Chuva? Pelada aquática. Carnaval? Pelada fantasiado. Páscoa? Só no chocolate. Casamento? Levava a roupa e ia de lá direto. Teve até pelada contra mulheres (com alguns lances desconcertantes)! Virei tesoureiro da pelada (tem gente que me chamava de presidente), botava dinheiro pra gente jogar, as bolas ficavam no meu porta-malas e sempre fazia churrascos de confraternização e campeonatos. Tinha até blog de zoeira! Ninguém entendia minha fissura e eu mesmo só fui entender na análise. São tantas memórias que a Pelada dos Macacos está pra sempre marcada na minha história.

Um dos campeonatos, onde fiquei novamente em segundo lugar e ainda fiquei conhecido como Avenida Filipe Chagas! Tudo por causa de uma falta absurda que não vem ao caso...
Um dos grupos que passaram nesses onze anos. Só alto nível... de pessoa, porque o nível técnico era questionável!
O pós-pelada e os churrascos eram melhores do que a pelada em si!
Despedida do Chicão, 67 anos dedicados ao esporte bretão de várzea! E jogando descalço! Nada mais que um mito! Inspiração para todos!

O futebol mudou pra mim. O esporte coletivo era diversão e não competição. Assistir na TV era um hobby delicioso, não mais um desespero. Discutir futebol? Pra quê? Só discuto com times que já possuem título mundial e nunca foram rebaixados ou seleções que sejam pentacampeãs... ou seja, praticamente ZERO de discussão. Portanto, levei mais de quinze anos pra amadurecer e realmente ser educado pelo próprio esporte.

Volto à Teresópolis pra começar a finalizar essa história. Na Páscoa de 2011, uma disputa de bola em uma peladinha tranquila arrebentou meu joelho esquerdo: fratura de menisco e esgarçamento do ligamento cruzado anterior. Mas nada de cirurgia pra mim. Já havia tratado e me recuperado milagrosamente com GDS, então, ia manter isso. Fiz também reforço muscular, mas a idade é implacável: antes uma torção num dia não me impedia de jogar no outro; dessa vez levei 7 meses pra conseguir voltar aos gramados. Voltei de leve, sem meu ímpeto todo, com medo de machucar novamente. Mas é só a gente se sentir bem que o gás vem de novo e, depois de 1 mês, a lesão piorou... o esgarçamento virou rompimento. Em abril de 2012, tomei uma das decisões mais difíceis de toda a minha vida: parar de jogar (minha analista teve trabalho na época).

Escrevo essa postagem desde às 5h30 da manhã porque acordei de um sonho com futebol. Eu era o lateral esquerdo da Seleção. Como sempre gostei de jogar avançado, percebi que a seleção adversária (alguma sulamericana) ia se aproveitar do espaço que deixei para contratacar (a tal Avenida Filipe Chagas). Corri muito! O atacante adversário deu um carrinho precipitado pra chegar na bola e eu dei outro, bem depois dele já estar no chão. Eu tirei a bola e nossos carrinhos se encontraram... o juiz deu pênalti e cartão amarelo pra mim. Duas frases-clichê do futebol vieram a seguir: "pênalti roubado não entra" e "quem não faz leva". O atacante bateu na mão do goleiro que – já ciente que eu era a via de escape do time – jogou na frente pra mim. Só na minha velocidade deixei meu marcador pra trás, fui na direção do zagueiro apontando para o meio da área, pedindo um atacante para passar a bola... mas era um truque. Eu precisava me vingar do juiz. Com um drible de corpo, tirei o zagueiro e chutei sem ângulo debaixo das pernas do goleiro.

Não consigo me lembrar direito da minha comemoração porque acordei num salto e não consegui mais dormir. Estou aqui registrando tudo porque meu corpo ainda esquenta quando me vejo nos gramados de sonho. O tempo passa mais rápido só de pensar... Futebol nunca foi uma simples paixão. Foi um daqueles amores inesquecíveis e insubstituíveis que mexem com a gente pra sempre.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Arte ao Lado: Jorge Lucio

A poesia foi utilizada na história (até mesmo em períodos pré-escrita) como forma de transmitir informação e garantir sua memorização. No entanto, ela é mais: é também considerada a arte do texto, aquela que utiliza a linguagem escrita para exprimir aquilo que está dentro de nós.

Ao entender que a tarefa crucial da arte é resistir e contrapor-se ao estabelecido pelas normas do poder, em nome da convivência, Jorge Lucio de Campos usa sua sensibilidade para escrever a partir das dicções de autores considerados renovadores da linguagem poética em relação ao que considera serem legítimas contribuições. Cria, então, ligações entre seus poemas e os de outros poetas em busca de uma poesia ao mesmo tempo contemporânea e extemporânea, a mais estranha ao gosto de sua época.
“Me esforço para criar ligações entre o que digo, ou melhor, o que dizem os meus poemas e o que é dito (ou penso que é dito) pelas imagens de variada natureza que são assinadas por outros autores (pintores, fotógrafos, cineastas, etc). [...] Gosto de reescrever, desconstruir, reinventar a escrita alheia, com o intuito de fazê-la acontecer de outra maneira.”
Em termos artísticos gerais, Jorge valoriza, sobretudo, a síntese formal, a riqueza expressiva e a amplitude semiótica e, assim, tenta fazer o máximo possível de sentido com o mínimo possível de palavras. Acredita que, se não se dispusesse a escrever poesia, ela própria o faria de uma maneira caótica e amorfa e, então, se perderia no vácuo da insignificância cotidiana: “sinto-a colocada dentro de mim, pulsante e mais forte do que a minha própria vontade.”

Filósofo de formação, Jorge se aproxima de Nietzsche quando diz que “faz poesia para não enlouquecer com a instrumentalidade racional e a boçalidade administrada que minam tenebrosamente os alicerces simbólicos da atualidade”. Crê na importância de registrar e preservar sua arte, independente de seu valor para a maioria das pessoas.

Jorge foi meu professor na graduação em design, na ESDI. Logo no primeiro ano ele veio ministrar a disciplina “Introdução à Análise da Informação” e ninguém tinha muita maturidade para entendê-lo (talvez por isso a turma adorava puxar temas como futebol e cinema trash para desvirtuar a aula). Mesmo assim, seu jeito paternal fazia com que a sala nunca estivesse vazia. Onze anos depois nos reencontramos quando fazia mestrado: eu ainda aluno e ele sempre professor. Num desespero acadêmico, precisei que ele se tornasse meu orientador, mesmo que isso significasse mudar totalmente a direção da minha dissertação (de economia para filosofia). Ele encarou o desafio comigo de uma maneira tão carinhosa e acolhedora que fui capaz de entrar no árido mundo da filosofia com a “calma dos ignorantes”, aquela que te torna humilde porém confiante. As consequências positivas são tantas que me faltam palavras para agradecer. E, mesmo que as tivesse, não seriam a poesia que só ele é capaz de fazer.